quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Trinta

Tem o Pedro que é o meu primo e que faz filmes. Faz filmes de mim. Fica sempre me filmando com o celular. Às vezes eu nem me lembro como é a cara dele sem o celular me olhando. O celular parece um tapa-olho de pirata. Tem dias que ele me leva para a escola e quando vamos de mãos dadas eu vejo que ele é alto como uma árvore. Ele só anda de preto. E fuma. E isso a Dudó acha horrível. Ele e a Dodó adoram ouvir músicas juntos. E eu aproveito também.


Vinte e nove

É assim ó: Eu tenho um cavalo zaino que na cancha é corredor, já correu mais de mil carreiras, este zaino que eu quero bem. Ai que cavalo bom, ai que cavalo bom. Já quiseram comprar meu zaino, por vinte mil notas de cem, não há dinheiro que pague o zaino que eu quero bem, ai que cavalo bom, ai que cavalo bom...

Vinte e oito

Na casa da Chalela, que é muito grande e cheia de árvores, têm três gatos e muitas teias de aranha. Teias de aranhas imensas, brilhantes, que ela não deixa ninguém destruir, porque ali é a casinha da dona aranha, ela me ensina. Me diz que teias são redes e que uma rede é uma engenharia perfeita. Fotografamos juntas as teias. Minha mãe me explicou que a Chalela é uma riponga empedernida. Outras palavras difíceis e novas. Não sei o que quer dizer, mas deve ser algo como a protetora das aranhas.

Vinte e sete

Perguntei à Dodó se ela tava braba com a Chalela e com o Presidente do Brasil, o Lula. Ela riu muito e me abraçou e disse que aquilo não era uma briga, que era uma discussão e que as mulheres da família eram todas assim, muito fortes e muito gritonas. E eu perguntei se todas tinham tomado muito leite quando eram pequenas, como eu tomava agora? Ela me abraçou e disse, a minha Fifizinha!

Vinte e seis

Ontem teve uma briga daquelas lá em casa. Com a Dodó e a Chalela. Fiquei tão apavorada com os gritos das duas que fiquei meio escondida atrás da cadeira branca de balanço, com medo que sobrasse pra mim. Mas o motivo da briga não era eu, graças a Deus. O motivo era mais sério. Elas estavam brigando por causa do Presidente do Brasil, o Lula. Era briga séria. Depois elas me levaram ao Shoping e tomamos sorvete e a Chalela me levou no pula-pula. E nem parecia que elas tinham brigado.

Vinte e cinco

A Didina é do Maranhão, que parece que é muito longe daquei de Brasília. Ela não sabe quantos anos ela tem, eu vou fazer quatro. Ela é muito magra e muito forte, consegue levantar pesos que mais ninguém consegue. Ela come acocada na bancada da área de serviço, empoleirada como uma coruja. E come com as mãos, faz porções pequenas com a ponta dos dedos e come com as mãos que são magras e de dedos longos. A Dodó disse que a Didina é primitiva e eu tenho que descobrir o que significa esta palavra.
Vinte e quatro

Quando a minha mãe não vai trabalhar ficamos na cama um pouqinho mais e nestes dias ela não se importa com a cama gabunçada. E então ela me conta histórias e faz cócegas, antes da Dodó trazer o meu leite. Nestes dias, que também não tem escola, tudo fica meio gabunçado e elas não precisam sair. E é muito bom.

Vinte e três

Chalela veio chorando no carro, sentada ao meu lado, me explicou que estava muito triste porque tinha perdido uma amiga. Fiquei de mão dada com ela o tempo todo, porque deve ser muito triste perder um amigo. Eu disse pra ela que eu também chorava de vez enquando, quando estou triste, mas que sempre achei as minhas amigas quando me perdia delas. Pode chorar, Chalela, eu disse então. Mas a Dodó e a minha mãe não choram nunca.

Vinte e dois

As camisolas que eu uso são parecidas com as da minha mãe e ela é a mãe mais linda que eu já vi. Depois do banho brincamos de desfile de modas. Depois que ela passa creme lince nos meus cabelos e diz que os meus crespos são lindos. Entro na sala e a Dodó é a platéia, minha mãe então anuncia: - Atenção, atenção, Sofia na passarela. Eu desfilo de camisola com margaridas e faço a voltinha perto do sofá. Elas aplaudem e a modelo sou eu.

Vinte e um

Eu sei a hora de tudo. A Dodó inventou as horas assim como ela sabe o nome de todas as coisas. Antes de ir para a escola, depois que a Didina me penteia, ela põe a mesa para o almoço e sempre tem um guardanapo com a minha letra S de Sofia desenhado nele. E nos dias que tem dever de casa ela põe um bloco quadriculado onde ela me ajuda com o dever de casa. Com a Dodó é tudo na hora certa. E depois minha mãe chega e tomamos banho juntas.

Vinte

Já gostei muito do Batman e da Mulé Viravilha, depois enjoei. E da Magali e da Mônquina eu gosto sempre. Mas o que eu mais gosto é do Homem Aranha. Deste eu não me canso nunca. Fui ver o filme com a Chalela mas não gostei da escuridão do cinema e tivemos que sair. Comemos pipocas as duas e eu expliquei para ela que adorava o Homem Aranha, mas que tinha que ser no claro.

Dezenove

Teve o acidente da Laura, a mãe do meu amigo Jonas. Toda a família dentro do carro se acidentou e foram todos para o hospital. A minha Dodó e a minha mãe ficaram na maior aflição e passaram muitos dias ajudando a dar banho, fazer comida e cuidar do Bug, que é o cachorro deles. E cada vez que faço manha pra sentar na cadeirinha do carro elas me dizem e repetem mil vezes o que já estou careca de saber, que o Jonas podia ter morrido se não tivesse na cadeirinha com o cinto.Pela cara que elas fazem, morrer deve ser uma coisa terrível, tão terrível que eu nem gosto de pensar nisso.

Dezoito

Um dos meus passeios prediletos com a Dodó é quando vamos brincar no parquinho do Pontão, na beira do Lago Paranoá. Vamos lá ver e contar o número de nôuvas. Nôuvas são noivas. Que são mulheres vestidas de branco e que vão se casar logo. Elas vão para o Pontão para tirar fotos na beira do lago. Se abraçam nas árvores, deitam no chão e ficam com as pernas cruzadas balançando. Alguém arruma o véu enorme e cuida do buquê. Sei tudo sobre as nôuvas. Minha Dodó me ensinou. A palavra guirlanda também aprendi e acho linda. Sentamos e ficamos olhando elas fazerem poses e às vezes rimos muito porque elas tropeçam e caem ou o véu voa. Mas rimos baixinho pra elas não ouvirem.
Dezessete

Num dos muros tem um buraco, pequeno e redondo. E de dentro do buraco, um cachorro vira-lata põe a cabeça pra fora e late furiosamente. Nunca sabemos quando vai acontecer. Quando ele vai estar lá. E quando acontece sempre nos assustamos e depois caímos na risada. Ficamos rindo ainda por muito tempo. Um dia fecharam o buraco e nunca mais ficamos sabendo do cachorro. A Chalela diz que aprendi a latir antes mesmo de começar a falar.

Dezesseis

Tem uma estrada muito comprida que vai do Shoping do Jardim Botânico até a nossa casa. As casas são muradas, grandes condomínios rurais, a Dodó me explicam que foram chácaras um dia. Com ela aprendi o nome dos bois, das vacas e dos berrezinhos. E que quando os cavalos não estão é porque estão trabalhando como a minha mãe. Pobre dos cavalos.

Quinze

Minha avó me busca e me leva de carro para a escola. Ás vezes eu durmo. Depois paramos na padaria e comemos pão de queijo. Voltamos para casa comendo pão de queijo e quase sempre cantando. Tem dias que a Dodó canta músicas tristíssimas. E outros dias ela canta músicas muito alegres. A que eu mais gosto é a do cavalo zaino, é claro.
Quatorze

Eu disse "era uma vez um corpo-espinho" e elas caíram na risada. Fiquei furiosa, como sempre fico quando elas não entendem o que eu falo. Assim foi com "berrezinho" e o "repitância", que é o começo do hino nacional. Mas isso aconteceu faz tempo e eu vou contar melhor outro dia porque hoje estou com sono e vou tomar a minha dedeira e dormir com a minha mãe. Lençol limpinho, a minha cama nova e grande e o colo dela que é sempre quentinho e cheiroso, como o da Dodó.

Treze

Teve o meu aniversário. Minha mãe e a Dodó passaram a noite fazendo a massa dos negrinhos. Eu lambo o resto da lata de leite condensado enquanto elas dão o ponto na massa. Deixam esfriar. Eu ajudo a desenformar os casquetezinhos de papel. Azuis. Brancos e rosas. Elas passam no chocolate granulado e colocam nas forminhas que vão se perfilando nas caixas de camisas que foram trazidas para isso. Tudo o que é feito pelas mãos delas é bonito. E bom. Com elas eu estou garantida. Outra palavra que eu só vou aprender mais tarde também.

Doze

As gavetas da Dodó eu descobri mais tarde. Antes, nem com banquinho eu alcançava. Pente, anel, lenço, lápis, batom, creme, remédio, toalha, óculos, clips, tesoura, alfinete, linha, perfume, pulseira, caneta. E agora, numa caixa pequena, que foi de talco e está vazia, ela guarda quatro moedas de ouro. Que são só para mim. Que não são de ouro, são de chocolate, na verdade. Estão sempre lá. Eu como as quatro e mais quatro voltam a aparecer, no dia seguinte. E o papel dourado tem o perfume do talco. Da minha avó, tudo é perfumado.

Onze

As horas. Sei que quando eu acordo, ela já está acordada e por isso vou correndo para a cama dela. Onde ela está sempre me esperando. Ela sabe quando vou entrar e a cama dela é enorme e me acomodo numa preguiça sem fim espichando um pouco mais o começo do dia. Ela começa o dia e organiza as minhas horas. A hora do leite e de escovar os dentes, a de brincar no pátio com os cachorros e a de estender a roupa no varal. A de comer antes da escola. E a que eu menos gosto que é quando ela desembaraça os meus cabelos. Aí tudo complica, eu choro, berro e a voz dela diz o meu nome com outra voz. Um tormento, mas vou aprender esta palavra muito mais tarde, muito antes dela começar a fazer as pazes com os meus cachos e com os meus crespos.