sábado, 26 de dezembro de 2009

Dez

A Didina penteia meu cabelo todos os dias, inventa penteados, coloca tiaras coloridas, que a Dodó chama de diademas. Tique-taques, trancinhas, elas fazem tudo para prender e alisar o meu cabelo, escovam, desembaraçam e este é sempre um momento difícil do dia. Mas a minha mãe e a Chalela gostam dos meus crespos. Minha tia diz: Minha cachopa de cachos! quando estou com o cabelo solto e eu acho cachopa uma das palavras mais lindas do mundo.

Nove

Enquanto a Dodó briga com os meus cachos e crespos eu grito muito alto porque este é o único jeito dela me entregar para a Didina que não puxa os meus cabelos e sabe me pentear como ninguém. Eu ouço a Dodó dizer furiosa, esta menina tem um gênio!e não entendo porque gênia e gênio que são palavras tão parecidas, são pronunciadas de maneiras tão diferentes.

Oito

São sete horas da noite, ela diz, tá na hora do banho, tá na hora de ir embora. Eu toco no pulso mostrando um relógio imaginário e sei que a Dodó está falando disso. Ela me ergue do balanço e diz, essa menina é uma gênia. Gênia eu ainda não sei o que é, mas já gosto da coisa e da palavra, por conta do abraço apertado que ela me dá. Gênia é quentinho.

Sete

Apalpo o som das palavras, experimento, e ela não me corrige. Carrasco é mais fácil que churrasco, gavião que avião, Chalela, que é Tia Lélia. Eu digo como posso. Às vezes são muito difíceis, as palavras, e então eu digo como posso. E ela sempre soube o que eu queria dizer. Mesmo quando eu não sabia falar, a Dodó sempre soube o que eu queria dizer.

Seis

Sei, por exemplo, que macacos comem bananas e que moram nas árvores. Que as corujas-buraqueiras vivem dentro da terra, ao contrário das outras. Que passarinhos comem alpiste e minhocas, e que cachorros comem ração e que quando tem osso, tem que ser um para cada um, pra não dar briga. E embaixo da da casa onde o beija-flor vem beber água, na janela do quarto da Dodó, uma passarinha construiu um ninho onde os filhotes foram alimentados com minhocas. Um dia todos cresceram e levantaram vôo.

Cinco

Outro dia fomos buscar minha mãe no aeroporto, que veio de São Paulo. O gavião, que é como eu chamo o avião, atrasou. Ficamos sentadas no banco de pedra olhando os peixes. São vermelhos, dourados, rápidos. Peixes. Plantas aquáticas. Ela dá nome para tudo o que existe, ela sabe o siginificado de todas as palavras, a minha Dodó. E é por isso que o mundo com ela é um lugar fascinante. E eu sei que sou uma menina de sorte.

Quatro

A minha avó tem a vida mais interessante que alguém pode ter. E por isso eu me considero uma pessoa de sorte, porque em ela sendo minha avó, a minha vida é interessante também. Ela sempre me mostra coisas interessantes, que nenhuma outra avó conhece. Como quando ela me levou para ver as manobras dos aviões franceses, com o Presidente da Fraça e tudo. Foi lindo, foi mágico, aqueles aviões riscando o céu com manobras coloridas. E quando fomos numa caminhada ecológica da Polícia Federal e, ao longo da rodovia tinha vários animais mortos que pareciam vivos. Foi com ela que aprendi esta palavra tão difícil. Taxidermista. Era uma exposição dos animais silvestres que morrem atropelados nas rodovias. E o que mais me fascinou foi o lobo-guará. E agora, desde que anunciaram a excursão ao jardim zoológico, que tenho dor de barriga, disseram que a guia da excursão é uma moça que usa uma máscara de lobo-guará e isso é a única coisa do passeio que me interessa ver.

Três

Minha avó é a dona das palavras e das horas. A palavra taxidermista, por exemplo, eu aprendi com ela. E foi a palavra que me incendiou para que eu quisesse conhecer a mulher que vestia a máscara do lobo-guará.


Dois

As primeiras mãos que me vestiram foram as dela. As da minha avó. Da minha Dodó. Que são firmes e decididas, desde aquela vez que ela me vestiu com as roupas amarelas e me embrulhou e me chamou de pacotinho. Os olhos da minha mãe se liquefaziam numa cachoeira azul e ela dizia para a minha Dodó: - Ela tem o olho bem puxadinho, mãe, parece uma japinha. As vozes dela aqui fora também não param, continuam. E me embalam. Continuam me embalando.

Um

Ouço as vozes delas. As vozes se parecem tanto que às vezes é impossível saber quem é uma e quem é a outra. Só vou apreender a distinguir depois, quando estiver fora da barriga da minha mãe. Agora, o barulho das águas me confunde e só sei que elas são duas e que falam e se movimentam muito. Mesmo quando trabalham, falam. Estão arrumando o meu quarto, a minha cama, o mosqueteiro, o meu nome em letras coloridas no feltro. Sofia. Elas falam. E a voz delas me embala. Me acalma. E tenho certeza então que tudo vai dar certo enquanto aproveito os últimos momentos desta preguiça primordial.